Ronaldo
Correia de Brito
Já não
existe a profissão de torradeira de café. Ninguém mais escuta falar nessas
mulheres que trabalhavam nas casas de família, em dias agendados com bastante
antecedência. As profissionais famosas pela qualidade do serviço nunca tinham
hora livre. Cobravam caro e só atendiam freguesas antigas. Não era qualquer uma
que sabia dar o ponto certo da torrefação, reconhecer o instante exato em que
os grãos precisavam ser retirados do fogo. Um minuto a mais e o café ficava
queimado e amargo. Um minuto a menos e ficava cru, com sabor travoso. “Pra tudo
na vida existe um ponto certo”, diziam orgulhosas do ofício, mexendo as
sementes no caco de barro escuro, a colher de pau dançando na mão bem treinada,
o fogo aceso na temperatura exata. Muitos profissionais se especializavam na
ciência de pôr um fim: os que mexiam a cocada no tacho de cobre, os que
fabricavam o sabão caseiro de gorduras e vísceras animais, os que escaldavam a
coalhada para o queijo prensado, os que assavam as castanhas. Nos terreiros de
candomblé, onde se tocam para os orixás e caboclos, os iniciados sentem o
instante em que a toada e o batuque alcançam o ponto de atuação, o transe que
faz o santo descer e encarnar no seu cavalo. Nenhum movimento é mais complexo
que o de finalizar. Nele, estão contidos o desapego e a separação, o sentimento
de perda e morte. Sherazade contou suas histórias durante mil e uma noites,
barganhando com o esposo e algoz Sheriar o direito de continuar vivendo e
narrando. Mil noites é um número finito. O acréscimo de uma unidade ao numeral
“mil” tornou-o infinito. Mil e uma noites se estendem pela eternidade.
Sobrepondo narrativas, entremeando-as com novos contos, abrindo veredas de
histórias que se bifurcam noutras, mantendo os enredos num contínuo com pausas
diurnas, porém sem o ponto final, Sherazade adiou o término e a morte. De
maneira análoga, Penélope tecia um manto sem nunca acabá-lo, acrescentando
pontos durante o dia e desfazendo-os à noite. Também postergava o momento.
[...] Uma artesã do barro de Juazeiro do Norte chora quando proponho comprar a
cerâmica representando uma mulher com muletas, uma criança no peito, o feixe de
lenha na cabeça. Conta a história que representou naquela peça simples, sente
pena de separar-se de sua criatura. O xilogravador Gilvan Samico me apresenta
os mais de cem estudos e as provas de autor até chegar à gravura definitiva.
Olha para os lados e me confessa que se pudesse não venderia nenhuma das
impressões. Confessa os dias de horror vividos até chegar ao instante em que se
decide pela prova definitiva, quando o trabalho é considerado concluído e o
criador experimenta a estranheza diante do que não mais lhe pertence. Que valor
possui o esposo de Sherazade, comparado à narrativa que a liberta da morte?
Talvez apenas o de ser o pretexto para o mar de histórias que a jovem narra ao
longo de mil e uma noites. E o que se segue a esse imaginário fim? O que ocupa
a milésima segunda noite, supostamente sem narrativas? Eis a pergunta que todos
os criadores se fazem. O que se seguirá ao grande vazio? Deus descansou no
sétimo dia após sua criação. O artista descansa, ou apenas se angustia pensando
se a criatura que pôs no mundo está verdadeiramente pronta, no ponto exato de
um grão de café torrado por uma mestra exímia? Afirmam que a flecha disparada
pelo arqueiro zen busca sozinha o alvo. Num estado de absoluta concentração,
arqueiro, arco, flecha e alvo se desprendem da energia do movimento e partem em
busca do ponto exato. Anos de exercício levam ao disparo perfeito. O escritor
trabalha com personagens que o obsedam, alguns chegando a cavalgá-lo como os
santos do candomblé. Sonha os sonhos do outro, numa entrega do próprio inconsciente
à criação. Enquanto se afoga em paixões, com a mão direita tenta manterse na
superfície e salvar-se; com a mão esquerda anota frases sobre ruínas. Nunca
possui a técnica exata de um arqueiro zen, nem a perícia de uma torradeira de
café. Dialoga com a morte como Sherazade, mantém a respiração suspensa, negocia
adiamentos e escreve. Num dia qualquer, sem que nada espere e sem compreender o
que acontece à sua volta, um editor arranca papéis inacabados de sua mão.
Disponível em: http://www.opovo.com.br/app/colunas/ronaldocorreiadebrito/2012/03/03/noticiasronaldocorreiadebrito,2794944
/sobre-tecnicas-de-torrar-cafe-e-outras-tecnicas.shtml Acesso em 12 abril 2016. (Texto adaptado).
Compreensão do texto
1-No TEXTO , o autor faz analogia entre o trabalho do artesão e o processo criativo do escritor.
2-Ao afirmar que “Sobrepondo narrativas, entremeando-as com novos contos, abrindo veredas de histórias que se bifurcam noutras, mantendo os enredos num contínuo com pausas diurnas, porém sem o ponto final, Sherazade adiou o término e a morte.” (parágrafo 3), o autor do texto retrata a capacidade de inventividade narrativa como possibilidade de salvação.
3. Todas as
passagens a seguir se reportam à dificuldade do artista em separar-se de sua
obra, “Uma artesã do barro de Juazeiro
do Norte chora quando proponho comprar a cerâmica representando uma mulher com
muletas, uma criança no peito, o feixe de lenha na cabeça.” (parágrafo 4)
“Olha para os lados e me confessa que se
pudesse não venderia nenhuma das impressões.” (parágrafo 4)
“Confessa os dias de horror vividos até chegar
ao instante em que se decide pela prova definitiva, quando o trabalho é
considerado concluído e o criador experimenta a estranheza diante do que não
mais lhe pertence.” (parágrafo 4)
“Conta a história que representou naquela peça
simples, sente pena de separar-se de sua criatura." (parágrafo 4)
4- A
referência à técnica desenvolvida pelas torradeiras de café, apresentada no
início do texto, constitui-se ponto de partida para a discussão acerca da
difícil arte de finalizar uma tarefa, tema retratado no decorrer do texto.
5. A finalização do processo de produção artística é retratada no texto como algo angustiante e doloroso, por se tratar de uma separação entre criador e criatura.
6. Considerando o texto, aponte, aquela em que as expressões apresentam relação sinonímica. "adiou" – "postergava" (parágrafo 3)
7. No final
do texto, ao comparar o arqueiro zen ao escritor, o autor observa que o arqueiro
zen, diferentemente do escritor, consegue, com exatidão, finalizar seu
trabalho.
8. A coesão de um texto se dá através da conexão entre vários enunciados e da relação de sentido existente entre eles. Em relação à coesão presente no texto, o termo destacado encontra-se devidamente justificado em:
“*...+ quando o trabalho é concluído e o
criador experimenta a estranheza diante do que não mais lhe pertence.”
(parágrafo 4). O conectivo “e” indica uma progressão semântica que acrescenta
um dado novo.
9. Em “Nos terreiros de candomblé, onde se tocam para os orixás e caboclos, os iniciados sentem o instante em que a toada e o batuque alcançam o ponto *...+” (parágrafo 2), as vírgulas utilizadas demarcam uma explicação acerca do espaço.
10. Nas proposições a seguir:
I. As palavras “desapego” e “separação” pertencem ao mesmo campo semântico.
II. O prefixo na palavra “infinito” exprime sentido de negação.
11. O termo destacado em “Enquanto se afoga em paixões, com a mão direita tenta manter-se na superfície e salvar-se [...]” (parágrafo 6), pode ser substituído, sem alteração de sentido, por: Ao mesmo tempo que.
12. Os conectivos ou partículas linguísticas de ligação, além de exercer funções coesivas, manifestam ainda diferentes relações de sentido entre os enunciados. As alternativas a seguir, estão com a relação estabelecida pelo conectivo em destaque CORRETAMENTE indicada entre parênteses.
“Dialoga com a morte como Sherazade, [...]” – (Comparação).
13. Por vezes, a omissão de palavras ou expressões não acarreta alteração no sentido de orações ou períodos, já que tal omissão pode ser depreendida do contexto. Há, dentre a alternativa a seguir, uma ocorrência assim caracterizada.
"Nunca possui a técnica exata de um
arqueiro zen, [...]” (parágrafo 6)
14. Acerca
da pontuação, no trecho “De maneira
análoga, Penélope tecia um manto [...]", a vírgula é utilizada para
separar uma expressão adverbial disposta no início do período. Em “Dialoga com a morte como Sherazade, mantém
a respiração suspensa, negocia adiamentos e escreve.”, as vírgulas são
utilizadas para separar orações coordenadas.
15. A
regência verbal em destaque na frase “mulheres que trabalhavam nas casas de
família” é a mesma do verbo destacado em “Deus
descansou no sétimo dia após sua criação.”
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